Meus irmãos e minhas irmãs,
Hoje é o único dia do ano litúrgico em que não se celebra a Santa Missa. A Igreja está de luto, na celebração da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. A Igreja está em recolhida oração. Hoje é dia de penitência. Dia de jejum. Dia de abstinência de carne. Dia em que cada um de nós deve voltar seus pensamentos para o Calvário, há dois mil anos, e participar dos sofrimentos atrozes vividos pelo Redentor da Humanidade.
Durante o Tríduo Sacro, a Liturgia revive os passos do Senhor, de forma mais acentuada do que no Tempo da Quaresma, quando era o período de convite à mudança de vida, momento de conversão, de desenvolver propósitos. Agora, vive-se o grande drama, como numa grande encenação do sofrimento de Cristo.
E hoje vivemos o instante do sacrifício. Jesus, o sacerdote que se nos deu ontem, na tarde de Quinta-feira Santa, na celebração da Instituição da Eucaristia, assegurando-nos, ainda, a perenidade do sacerdócio ministerial, hoje se imola. O que ontem fora uma prefiguração, agora já se efetivou: o Cristo se imolando continuamente em nossos altares. Eis, pois, o motivo pelo qual não se celebra na Sexta-feira Santa o Sacrifício da Missa, pois se encontra suspenso no madeiro da ignomínia erguido por nossas constantes infidelidades à graça divina o Deus Redentor. E nesse hiato de sofrimento e de expectativa pelo que há de vir nos séculos futuros meditamos, até o dia em que celebraremos com a Augusta Trindade uma ação de graças eterna, na bem-aventurança.
No dia em que o sacrifício de Cristo está mais central do que nunca, a tradição da Sagrada Liturgia não celebra o sacrifício da Missa, mas uma evocação de sua morte, que não deixa de estar em íntima união com a missa de Quinta-Feira Santa, já que o pão consagrado ontem é consumido hoje.
Quando tudo parece ter fim, a profecia de Isaías e a carta aos Hebreus, com fios de sofrimento, ajudam a tecer um feixe de luz: “Ei-lo, o meu servo será bem-sucedido; sua ascensão será ao mais alto grau” (Is 52,13); “Cristo, nos dias de sua vida terrestre, dirigiu preces e súplicas, com forte clamor e lágrimas, àquele que era capaz de salvá-lo da morte. E foi atendido, por causa da sua entrega a Deus” (Hb 5,7). Se a paixão de Cristo nos fere profundamente, a cruz revela uma novidade infinitamente maior, pois consiste na “hora da glória”.
A Liturgia nos faz sentir, de maneira especial, o significado do sofrimento de Cristo e as duas leituras que antecedem à leitura da Paixão são fundamentais para penetramos no Mistério que ora celebramos. A Paixão segundo São João constitui o modo privilegiado de acesso ao Mistério Pascal que neste dia revivemos, sobretudo como morte do Senhor.
A primeira leitura (Is 52,13-53,12) é o quarto canto do Servo de Javé. No texto de Isaías, a Igreja nascente encontrou, através das nuvens da história antiga, o fio que a existência de Jesus retornou e levou ao fim: a doação da vida do justo, pela salvação dos homens e mulheres, pela salvação dos irmãos, mesmo dos que o rejeitaram e mesmo daqueles que o traíram. Nesta leitura temos o Canto do Servo Sofredor de Isaías. O profeta nos descreve um personagem misterioso que tomará sobre si as dores do povo: “Meu servo, o Justo, fará justos inúmeros homens, carregando sobre si nossas culpas”. Esse servo sofredor anunciado pelo profeta é o Cristo. No madeiro da cruz Cristo assumiu por amor as nossas culpas. Aquele que não tem pecado, fez-se pecado e sentiu-se pecado por nós no madeiro da cruz. Cristo assumiu por nós uma morte humilhante e vergonhosa, a fim de que tivéssemos vida e vida em abundância.
Caros irmãos,
Já a segunda leitura, retirada da Carta aos Hebreus (Hb 4,14-16;5,7-9), coloca em evidência que Jesus participou em tudo de nossa condição humana, exceto do pecado. Assim devemos nos colocar perante o mistério de hoje: Jesus fazendo-se homem em tudo – exceto no pecado – morre pela salvação da humanidade, para o perdão de nossos pecados, inaugurando o novo tempo: o tempo da salvação e da glória.
A obediência encontra em Jesus a plenitude (Hb 5,7-9). Ele mesmo se torna exemplo que deve ser seguido e imitado. Uma obediência que produz frutos não para ele mesmo, mas para todos quantos lhe obedecem. Para esses, ele se torna “fonte de salvação”. Ao ser solidário com a humanidade até a ponto de enfrentar a morte, Jesus pode ser chamado ao mesmo tempo de Filho de Deus e sacerdote de Melquisedeque. Desde que Cristo se assentou no trono de Deus, já não há perigo para os crentes se aproximarem dele (cf. Is 6,1-6; Ex 19,21), visto que se converteu em “trono da graça” (Hb 4,16), pois Cristo se apresenta como nosso irmão, conhece por experiência (Hb 4,15) nossa situação de debilidade e está presente solidariamente para nos socorrer.
Meus irmãos,
Nesta celebração, acompanhamos os passos do Senhor em sua Paixão até à entrega total na cruz (Jo 18,1-19,42).
Contemplando e adorando o Senhor crucificado, elevamos nossa oração por todas as pessoas que o sangue de Cristo nos fez irmãos, especialmente os que sofrem, prolongando, hoje, o mistério de sua Cruz.
Comungando do seu corpo, recebemos força para viver da esperança e da vitória que nasce da Cruz. É Páscoa. Cristo, que morre na cruz, passa deste mundo ao Pai. Do seu lado brota-nos a vida sobrenatural. Passamos do pecado para vida nova da ressurreição. “É a páscoa da Cruz”.
Hoje, irmãos, estamos diante do corpo morto do Senhor. Hoje, estamos diante da morte do Filho de Deus, “que se humilhou até a morte e morte de cruz”. Jesus, que suportou a calúnia, o desrespeito, a zombaria, a condenação de morrer numa cruz, morte reservada a criminosos, é quem nos concede o salvo-conduto para participarmos dos benefícios que o seu martírio nos assegura até hoje: “Jesus Nazareno, o Rei dos Judeus”.
A paixão e morte de Jesus é um mistério, uma verdade de fé que ultrapassa a compreensão dos pobres mortais. Por isso, é necessário que todos nos penitenciemos e rezemos como Ele: “Pai, perdoai-lhes eles não sabem o que fazem”. De maneira exemplar, Cristo cumpriu a vontade do projeto de salvação de seu Pai: angústia, dor, calvário, crucificação, vinagre, desprezo, humilhação, despojamento, doação, enfim, amor pela humanidade.
Meus irmãos,
A paixão nos foi relatada em densas palavras e episódios que devem não somente tocar nossos corações, mas fazer de cada um de nós protagonistas da paixão. Rezamos com esta Paixão. Vamos nos converter e procurar a graça de Deus com o relato que acabamos de refletir.
Morte da pessoa mais importante da humanidade: morte do Filho de Deus, morte do Redentor, morte do homem que salvou a humanidade. Tanta humilhação que ouvimos que um soldado lhe abriu o lado com uma lança. Nunca imaginaríamos o soldado anônimo, que a tradição mais tarde chamou-o de Longinus, cujo gesto cruel era o cumprimento da profecia de Zacarias: “…derramarei sobre a casa de Davi e sobre os habitantes de Jerusalém um espírito de graça e de consolação. E eles olharão para mim depois de haver-me transpassado. Lamentarão a morte do filho único, chorarão como se chorassem sobre um filho primogênito” (Zc 12, 10).
Contemplamos o Cristo transpassado e morto na cruz. O primogênito de Deus Pai, isto é, aquele que tem o direito de herança sobretudo. O primogênito de todas as criaturas, aquele para quem todas as coisas foram feitas, tanto as do céu quanto as da terra.
Irmãos caríssimos,
Domingo passado celebramos a entrada triunfante de Jesus em Jerusalém com o Domingo de Ramos. Ontem celebramos a instituição da Eucaristia, instituição do sacerdócio ministerial. Diante do templo, o povo curioso por causa da ressurreição do amigo fiel, Lázaro, quer estar perto de Jesus. Daí a afirmação do Senhor: “Eu vos digo com toda a verdade, se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, ficará só; mas, se morrer, produzirá muito fruto” (Jo 12,24).
Pensemos bem: Jesus é o grão de trigo que traz dentro de si a força da vida, da vida eterna, da vida na Trindade. Mas, para que anuncie a vida, irrompendo a morte terá que morrer, na mais cruel de todas as mortes, a morte de cruz. O grão morre para brotar, é um grão carregado de esperança, de doce esperança da ressurreição. É uma morte que anuncia e traz no seu bojo a vida, a vida eterna. Morte bendita que anuncia e personifica a vida, vida plena, vida em abundância, vida em plenitude. Por isso a Cruz é o lenho da esperança cristã, o símbolo de nossa fé: “Enquanto o mundo gira, a cruz permanece de pé!”
Choramos a morte de Jesus no madeiro da Cruz. Beijamos o Senhor Morto e na noite de hoje iremos retirar Jesus da Cruz e caminhar com seu esquife pelas principais ruas desta Manchester mineira, saindo do Morro da Glória em direção à Sé Catedral Metropolitana de Santo Antônio. Contemplamos as suas chagas! Contemplamos o seu sofrimento! Contemplamos a morte para ressuscitarmos com o Senhor no terceiro dia, na ressurreição da vida eterna!
Sofrimento pela morte! Sofrimento que ilumina o mundo. Sangue que derramado pela nossa iniqüidade é esperança da vida eterna. Cristo morto que nos pede um renovado empenho pastoral para abandonar a morte e viver a vida plena, vida de fé, vida de comunidade, vida de conformidade com o projeto de salvação de Nosso Senhor Jesus Cristo. Vida de conformidade com o Deus da Luz, com o Deus da Vida, com o projeto do Primogênito e redentor de todas as criaturas no caminho que nos leva à glória eterna.
Amados irmãos,
O evento da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo são três momentos distintos, mas inseparáveis, de nossa fé: “Cristo morreu por nossos pecados e foi sepultado. E ressuscitou ao terceiro dia”. E, mais, “ninguém me tira a vida. Tenho o poder para dá-la e novamente para retomá-la”.
Estamos diante de um morto, que é nosso: Jesus de Nazaré, nascido de uma mulher virgem, morto pelos nossos pecados, de cujo lado aberto pela lança da misericórdia correu água, que lavou nossos crimes e nossa infidelidade. Jesus o dom da vida eterna, a verdade única, a luz eterna, a árvore da vida do Paraíso, o caminho para a ressurreição e a vida.
Com tudo isso, entre as leituras e a veneração da Cruz gloriosa, assistiremos agora às grandes preces da Igreja, modelo das preces dos fiéis em nossa Liturgia. Este rito também se inspira na ideia de que a cruz é a fonte da graça de Deus, da vida da Igreja. Do lado aberto do Salvador nasce a sua única Igreja, a Santa Igreja Católica.
Enfim, depois da mistagogia da palavra de Deus, das preces universais, especialmente da oração pedindo a paz e do pedido generoso de dignidade e vida plena para os deficientes, para aqueles que são chamados a se levantarem, permitirem-se ao resgate de Deus, atendendo ao apelo do Mestre, iremos receber a comunhão, simples e devoto gesto de dedicação ao Senhor que nos amou até o fim: “Jesus tanto amou o mundo que morreu na Cruz pela nossa Salvação”.
Prezados irmãos,
A paixão de Jesus sempre apresenta à humanidade o sofrimento das vítimas. É verdade que não se pode resolver todas as injustiças do mundo, mas a celebração da Paixão é convite a assumir o compromisso com alguns gestos de humildade e reconciliação. O primeiro, talvez, seja reconhecer que nosso estilo de vida pode fazer pesar ainda mais as cruzes de muitas pessoas e abrir ainda mais suas feridas. Reconhecer as estruturas de morte e denunciá-las é outro compromisso que nasce da cruz de Jesus.
A imagem de algumas mulheres e do discípulo amado, aos pés da cruz, antecipa o verbo da ressurreição: “estavam de pé” (Jo 19,25). Manter-se de pé é atitude grandiosa, de disposição em seguir em frente, de encontrar os feixes de luz para iluminar o caminho. Não foram poucas as vezes em que Jesus “ergueu as pessoas”. Na “hora da glória”, ele é erguido pelo Pai do domínio da morte. Para permanecerem de pé, o segredo das mulheres e do discípulo amado foi permanecerem perto da cruz, perto de Jesus. A tentação das fugas, das máscaras, das desculpas, das reclamações, da indiferença exige o discernimento de não fugir da realidade da vida, de enfrentar as contradições com os olhos fixos em Jesus Cristo, que, naturalmente, conduz cada olhar para o lugar das vítimas do mundo e para a redenção de todas as coisas.
Meus irmãos,
A liturgia sugestivamente mantém desde a noite de ontem o altar desnudado e o sacrário aberto. Jesus está morto. Que o sofrimento seja o caminho de vida, como o grão que morre para dar a vida à espiga. Jesus abraçou a cruz e a morte por fidelidade à missão que o Pai lhe deu, de ser o rosto misericordioso de Deus, solidário com os pequenos, com os pecadores, com os idosos, com os pobres.
Esta é a nossa missão: ser fiel com o Cristo da Cruz, do Calvário para a Ressurreição e para a Vida eterna. Amém.