Ser missionário
 
Um olhar além das aparências
 
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Às vezes, tem-se a impressão de que o processo de globalização pretenda impor-se como chave de interpretação de toda a realidade. De fato, o modelo atual de sociedade não é um “modelo comunitário”, mas um “gigantesco supermercado”, que determina um mesmo modo de pensar (pensamento único) e as mesmas normas de comportamento (consumo). É verdade que este processo apresenta múltiplas escolhas e possibilidades, mas um olhar mais atento pode perceber uma tendência à radicalização.

Nesse sentido predomina a lógica que, em suas várias dimensões, dá prioridade “absoluta” ao mercado e ao dinheiro. Aí, o único “deus” aceito e reconhecido é aquele que abençoa os negócios e a prosperidade econômica. Surge o risco de que desapareça, não somente a percepção do Deus Vivo, mas também a dignidade de todos os seus filhos! A tão propalada religiosidade do “bem-estar” e as teologias da prosperidade acabam fazendo parte dos muitos elementos decorativos integrados ao mesmo modelo de consumo.

Aos olhos do mundo atual, anunciar o Evangelho, que concentra a sua atenção na “gratuidade” e no “perdão”, só pode ressoar como uma grande “blasfêmia”. A lógica do Evangelho não combina com a lógica do mercado, que reduz o ser humano a mero consumidor (e tem que pagar por isso!). Também os escribas de outrora, que queriam manter a realidade sob controle, através de paradigmas legais (o pensamento único daquela época), acusaram Jesus de “blasfêmia” ao realizar sinais de reconciliação e de perdão. A narração da cura do paralítico de Mt 9, 1-8 é um bom exemplo disso.

Mateus simplifica a narração de Mc 2, 1-12 para evidenciar a questão principal: o perdão dos pecados! Dessa forma ele cria um contraste formidável entre a Lei que julga e condena e Jesus que cura e perdoa. Mas isso não é evidente de imediato. Jesus leva em consideração a totalidade da pessoa, não se limita à paralisia das pernas, mas estende o seu olhar até as raízes constitutivas do ser humano: assim como a paralisia das pernas imobiliza a pessoa, impedindo-a de ir ao encontro dos outros, do mesmo modo o pecado paralisa a pessoa, impedindo que vá ao encontro de Deus.

Por isso, Mateus realça o perdão dos pecados, como reconstituição integral da relação com Deus, para que seja possível restabelecer a relação com os outros. Os escribas não acusam Jesus de “blasfêmia” porque faz um paralítico andar, mas porque ele reivindica um poder que é exclusivo de Deus. Eles conhecem a Lei, sabem o que Deus pode ou não pode fazer, eles têm o controle sobre a realidade e o que a Lei determina não se discute!

Do outro lado “Jesus vendo o pensamento deles” (tradução literal) formula uma pergunta reveladora: “por que pensais maldades (ponerá) em vossos corações?” (v. 4). O olhar de Jesus, também nesse caso, penetra até o coração das pessoas, fonte, não só dos sentimentos, mas também dos pensamentos e das decisões (cf 15, 19). Ora, a maior “maldade” consiste em não reconhecer que Deus é amor e perdoa, confundindo-o com a Lei que condena e castiga! Quem fica “preso” à Lei não consegue ir ao encontro nem de Deus nem dos irmãos.

A partir da informação de Mc 2, 1 de que “Jesus estava em casa” (=igreja) Mateus mostra, sem hesitação, que a comunidade cristã é o lugar da gratuidade e do perdão, pois nela está sendo exercido o poder messiânico de Jesus. Não é por acaso que a multidão dá glória a Deus, não por Jesus ter curado um paralítico, mas por Ele ter dado “tal poder aos homens” (v. 8). O termo plural (“aos homens”) indica exatamente que o perdão divino, transmitido por Jesus, deve ser exercido pela comunidade cristã (18, 18). De fato, no perdão recíproco dos irmãos torna-se visível a Glória do Céu... mas “o perdão” continua sendo uma “blasfêmia” para a lógica do mercado.

Autor: Sérgio Bradanini
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