Com a palavra...
 
A espiritualidade cristã
Por: Dom Fernando Mason
Bispo Diocesano de Piracicaba
 
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Sempre temos dificuldade diante das palavras espírito, espiritualidade, vida espiritual. E as parcas noções que temos delas não nos proporcionam a clareza necessária à construção de uma vida cristã sólida. Por isso temos que retomar sempre esses temas para melhorar nossa compreensão, de tal maneira que possamos agarrá-la e, a partir daí, começar a moldar melhor nossa vida.

Nossa dificuldade começa com a palavra espírito que na modernidade recebe diversos sentidos.

Segundo o conhecimento filosófico, o ser humano tem duas maneiras de conhecer: os sentidos, pêlos quais captamos o mundo sensível, e o intelecto, pelo qual captamos o mundo inteligível ou supra-sensí-vel. A partir disso, entendemos as palavras espírito e espiritual como sendo os entes não-materiais, os valores e as coisas culturais e os valores ético-humanistas. Com o tempo, na nossa cultura ocidental, a compreensão filosófica da palavra espírito e a compreensão da fé se misturaram, pelo que espiritual passou a significar valores ético-humanistas. Isso faz pensar que por espiritual o cristianismo entenda a busca desses valores. Essa busca, porém, é própria de todas as religiões.

Essa mistura da experiência filosófica e da experiência cristã leva a distorções que nos dificultam o viver espiritual. Por exemplo: distinguimos o "fazer coisas materiais" e o "fazer coisas espirituais". A partir dessa distinção, um mecânico que conserta carros, busca ampliar sua oficina, ele faz coisas materiais, é materialista, não entende de coisas espirituais.

Já um professor de literatura, que leciona na faculdade, lê bastante, participa de congressos, este faz coisas espirituais, é espiritualista e entende de coisas espirituais.

Partindo dessa concepção, pessoas como mães de família, operários, lavradores não teriam vida espiritual. O analfabeto também não poderia ter acesso a ela.

Se quisermos entender o que é espírito, espiritualidade, vida espiritual, devemos deixar de lado esse modo de pensar. Surge a pergunta: mas então, quando falamos de espiritualidade cristã, o que entendemos por espírito?

A tradição cultural do Ocidente entende por espírito o modo de existir próprio do ser humano, modo que o distingue dos outros níveis de ser, tais como o vegetal e o animal. Espírito não é, portanto, algo oposto ao corpo.

Espírito é o modo de existir que tem como apanágio deixar-se atingir e abrir-se à dimensão originária que chamamos de Deus-mistério. Mas o Deus-mistério não é o que está além do nosso alcance, não é o estranho longínquo, o misterioso, o enigmático, o abstraio.

Ele é, pelo contrário, o aquém, isto é, a intimidade mais íntima da interioridade de nós mesmos.

As palavras deus, transcendência, selbst, ser, psique são definições pelas quais a teologia, a filosofia, a psicologia tentam dizer algo acerca do Deus-mistério.

Assim ser espírito é a experiência maior do ser humano, experiência que constitui sua identidade. Esta experiência busca compreender-se, organizar-se, tematizar-se.

Dessa elaboração surge o que chamamos de espiritualidade que não é outra coisa do que o cuidado, a cura, o amor disso que somos, espírito. Espiritualidade não é disciplina de ensino, não é ciência do saber. Ela é, porém, verdadeiro saber, saber comprovado por evidências vitais; por isso a espiritualidade é uma verdadeira ciência, numa compreensão da palavra ciência diferente da usual e comum, própria do nosso sistema de ciências físicas, matemáticas, biológicas e humanas.

Se o espírito é a experiência mais radical, então a espiritualidade exige radical conversão do nosso modo de ser. Essa conversão no Ocidente recebeu o nome de mística, entendida não como atividade privilegiada de alguns contemplativos, nem como vivência sentimental da alma piedosa, mas como busca radical do Deus-mistério.

Por ser radical, ela exige o total engajamento da nossa liberdade. A essência da mística cristã é, pois, esse engajamento de busca do Deus-mistério.

A crise da sociedade atual provém do total esquecimento do espírito. Esquecimento que relegou a espiritualidade e a mística a um plano secundário.

É preciso resgatar o sentido profundo da mística, não como uma atividade piedosa do homem, mas como um empenho vital que se concretiza na realidade do dia-a-dia. O pensamento, a arte, a ciência, até o esporte, quando atingidos pela seriedade radical da mística, abrem-se em diferentes vias à acolhida incondicional do Deus-mistério, lá onde se acha o manancial do espírito, a espiritualidade.

O Deus-mistério, porém, ultrapassa nossas duas possibilidades de conhecimento, os sentidos e o intelecto. Ele é inacessível a partir de nós mesmos. Mas Deus se revelou no Evangelho (a boa nova!) de Jesus Cristo, em suas belas e sábias palavras e em nas atitudes que comprometiam seu próprio viver.

Assim, tudo de espiritual que é aprendido no âmbito da fé não vem de nossas experiências intelectuais, mas da dimensão de Deus. A esse mundo inacessível a tradição eclesial ocidental chamou de sobrenatural, diferenciando-o do natural (mundo sensível e inteligível).

Portanto, na experiência cristã, as palavras espiritual, espiritualidade têm o sentido, pura e simplesmente, de empenho de dinamizar o espírito, a existência que somos a partir e iluminados pelo discipulado (aprendizagem) do seguimento de Jesus Cristo, feito a dinâmica maior de nossa vida. Por isso, para nós cristãos, a verdadeira espiritualidade é o seguimento radical de Jesus Cristo.



 
 
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