Na Bíblia Hebraica, os livros de SAMUEL fazem parte dos chamados "profetas anteriores" (juntamente com Josué, Juízes e Reis). A sua atribuição a SAMUEL talvez provenha de uma antiga tradição rabínica (Baba Bathra, 14b) baseada numa incorreta interpretação de 1 Cr 29,29.
Na realidade, a presença de SAMUEL fica circunscrita à primeira parte do primeiro livro, sendo Saul e David os protagonistas do resto da obra. Originariamente, os livros de SAMUEL eram uma só obra. A divisão em duas tem origem na versão grega dos Setenta (séc. III-II a.C.); e esta divisão terminou por impor-se, mesmo na Bíblia Hebraica, a partir do séc. XV.
Os tradutores gregos uniram os dois livros de SAMUEL aos dos Reis (também divididos em dois) para formar os quatro "Livros dos Reis", correspondendo os dois primeiros a 1 e 2 Sm. A tradução latina da Vulgata respeitou esta divisão em quatro livros e chamou-lhes "Livros dos Reis". E assim, na Vulgata, 1 e 2 Reis equivalem aos nossos 1 e 2 SAMUEL; 3 e 4 Reis equivalem aos nossos 1 e 2 Reis.
TEXTO O texto hebraico massorético (TM) tem fama de ser difícil e, por outro lado, apresenta notáveis diferenças a respeito da versão dos Setenta. Propuseram-se várias hipóteses explicativas do fato. Muito provavelmente, o texto grego (Setenta) procede de outro texto original hebraico. As descobertas de Qumrân (IV Q) mostraram numerosos fragmentos hebraicos dos livros de SAMUEL que podem remontar aos sécs. III-II a.C. e apresentam um texto mais aproximado dos Setenta do que do TM. Apesar disso, pode ser prematuro tirar daqui conclusões a respeito da autenticidade dos textos. Podemos encontrar-nos diante de duas formas do TM - uma das quais mais simplificada - que coexistiriam antes da era cristã.
VALOR HISTÓRICO Apesar de os livros de SAMUEL não serem uma narração histórica "neutral", nem por isso estão despidos de valor histórico. Esta deve ser, até, a parte de toda a História deuteronomista menos "manipulada" teologicamente. O seu horizonte é muito vasto: mergulha no período mais nebuloso do tempo dos Juízes, e vai terminar numa época mais testemunhada documentalmente. Cobre a passagem do tempo dos juízes à monarquia, sendo talvez este o momento mais inseguro nas suas informações: coexistem cinco versões diferentes (1 Sm 8; 9; 10,16.20-24; 11,12-15).
No interior da verossimilhança do quadro geral, sobressaem informações pontuais de grande valor, não só histórico mas também cultural (1 Sm 13,19-22) e topográfico (1 Sm 13; 17; 31). Tudo isto faz desta obra uma das fontes mais fidedignas da História de Israel.
CONTEÚDO E DIVISÃO O que melhor se nota, ao determinar a estrutura dos livros de SAMUEL, é que os cap. 1-12 apresentam claras afinidades com o livro dos Juízes e que os cap. 1-2 de 1 Rs parecem o prolongamento lógico de 2 Sm 9-20. A atual divisão interna corta o relato da morte de Saul (1 Sm 31; 2 Sm 1) e, sobretudo, a unidade mais ampla da "subida de David ao trono" (1 Sm 16; 2 Sm 5). Apesar disso, a obra apresenta-se como uma unidade literária, histórica e teológica, ligada por três protagonistas: Samuel, Saul e David.
O seu conteúdo poderá ser dividido nas secções que apresentamos seguidamente:
I. Infância de Samuel; a Arca e os filisteus: 1 Sm 1,1-7,17;
II. Realeza - Samuel e Saul: 1 Sm 8,1-15,35;
III. Subida de David ao trono: 1 Sm 16,1 a 2 Sm 5,25;
IV. David e a Arca; êxitos de David: 2 Sm 6,1-8,18;
V. Sucessão de David: 2 Sm 9,1-20,26; ver 1 Rs 1-2;
VI. Vários apêndices: 2 Sm 21,1-24,25.
FONTES A crítica literária detectou a existência de fontes documentais e tradicionais diversas, as quais, unidas a elementos redacionais de origem deuteronomista, seriam os materiais dos livros de SAMUEL. Relativamente à sua antiguidade, há concordância quanto a reconhecer-lhes uma aproximação aos fatos, embora no estado atual já sejam resultado de diversos retoques sofridos na época salomônica e, inclusive, exílica. Entre as unidades mais importantes e antigas estariam os relatos da sucessão de David (2 Sm 9-20) e da sua ascensão ao trono (1 Sm 16,1-13; 2 Sm 5,5; 8,1-18), ainda que este apresente maiores problemas: há duas versões da entrada de David ao serviço de Saul (1 Sm 16,14-23; 17,55-58), e dos relatos do atentado falhado de Saul contra David (1 Sm 18,10-11; 19,9-10), da intervenção de Jonatas a favor de David (1 Sm 19,4-7; 20,1-42), da chegada de David à terra filisteia (1 Sm 21,11-16; 27,1-12), do perdão de David a Saul (1 Sm 24 e 26) e das denúncias dos habitantes de Zif (1 Sm 23,19; 26,1).
Na mesma linha, poderiam situar-se as tradições favoráveis a Saul (1 Sm 9-11; 13-14; 31), a história da Arca (1 Sm 4-6; 2 Sm 6) e o núcleo inicial da profecia de Natan (2 Sm 7). Pode também considerar-se como fontes a documentação oficial da corte, de que seriam reflexo as listas dos filhos de David (2 Sm 3,2-5; 5,13-16), dos oficiais de David (2 Sm 8,16-18; 20,23-26), dos heróis de David (2 Sm 23,8-39) e dos gigantes filisteus, a quem venceram (2 Sm 21,15-22), os resumos das campanhas de David e Saul (1 Sm 14,47-52; 2 Sm 5,17-25; 8,1-14), o recenseamento do povo e a compra da eira de Arauna (2 Sm 24,16-23).
A estas unidades se teriam juntado, por volta do séc. VIII, novos materiais aparecidos em círculos proféticos. Podem colocar-se neste período as tradições sobre a infância de Samuel (1 Sm 1-3), a rejeição de Saul (1 Sm 13,7b-15a; 15), a unção de David (1 Sm 16,1-13), o combate entre David e Golias (1 Sm 17) e o relato da vidente de En-Dor (1 Sm 28,3-25).
Outras unidades menores isoladas, como dois salmos (1 Sm 2,1-10; 2 Sm 22), duas lamentações de David (2 Sm 1,19-27; 3,33-34) e um oráculo (2 Sm 23,1-7) foram sendo integradas na obra, ao longo do seu processo de formação.
MENSAGEM TEOLÓGICA Os livros de SAMUEL fazem parte de um grande projeto teológico, conhecido como "História Deuteronomista". Designa-se assim o trabalho de reflexão histórico-teológico realizado cerca do ano 550 a.C. por um grupo de teólogos, guiados ideologicamente pelos princípios da teologia do Deuteronômio, a partir de fontes plurais e heterogêneas preexistentes, orais e escritas. O seu propósito não era apresentar uma "exposição neutral" da História, mas afirmar a sua "importância teológica" a partir da dolorosa experiência do desterro na Babilônia (586 a.C.).
Esta história está estruturada em quatro grandes etapas: conquista da terra (Josué), confederação tribal (Juízes), instituição da monarquia (SAMUEL), desenvolvimento e final dramático da monarquia (Reis). Trata-se de uma "releitura histórica" destes acontecimentos. Os elementos redacionais, ainda que mais perceptíveis em Juízes e Reis, não estão ausentes nos livros de SAMUEL (1 Sm 2,22-36; 4,18; 7; 8; 10,17-27; 2 Sm 2,10-11; 5,4-5; 7). Dentro deste projeto teológico, os livros de SAMUEL sublinham três aspectos: a origem, a natureza e as exigências da monarquia em Israel, a importância do profeta, como intérprete e mediador de Deus, e a centralidade política e religiosa de Jerusalém.
1. Origem, natureza e exigências da monarquia israelita: a introdução da monarquia em Israel, como forma de governo, não esteve isenta de reticências e ambigüidades: podia supor um afastamento de Javé, o único e verdadeiro Senhor. Além disso, os modelos monárquicos existentes em redor de Israel implicavam certa divinização do rei, e adotá-los supunha um risco acrescentado por causa das estruturas da religião javista. O equívoco desfaz-se porque o próprio Senhor dá a sua aprovação. No entanto, permanece claro que a monarquia israelita não é democrática nem autocrática, mas teocrática. Tanto Saul como David (e Salomão) são "ungidos" de Deus e "obrigados" a manter-se submissos à sua vontade, pois Deus é o verdadeiro rei do povo.
2. Importância do profeta: o profeta aparece como contraponto do poder monárquico; é a memória constante do senhorio de Deus. Face à tendência institucional (2 Sm 7), significa o elemento carismático; e, perante a pretensão absolutista do poder, assegura a consciência crítica (2 Sm 12). Samuel e Natan encarnam, de maneira especial, essas funções. A História, em todas as suas instâncias (políticas, sociais, religiosas), deve estar aberta ao juízo de Deus; e o profeta é o instrumento de que Deus se serve para isso.
3. Centralidade de Jerusalém: convertida por Deus em capital política e religiosa, Jerusalém passa a ser um dos sinais de identidade mais importantes do judaísmo. Embora a sua importância política tenha decaído, a sua estrutura religiosa adquiriu grande desenvolvimento. A teologia de Sião, expressa nos chamados "Cantos de Sião" (Sl 46; 48; 76; 87) e em grande parte da pregação de Isaías, é uma prova disso. Os livros de SAMUEL sublinham intencionalmente estes aspectos (2 Sm 5; 6; 24,18-25). Por isso, Jerusalém será também o centro de todas as instituições teológicas de Israel até ao Apocalipse (Ap 21-22).
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