Nulidade matrimonial: uma oportuna reflexão |
Por: DOM EURICO DOS SANTOS VELOSO
ARCEBISPO EMÉRITO DE JUIZ DE FORA, MG. |
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O Papa Francisco assinou, no último dia 8 de setembro, a Carta Apostólica, em forma de motu proprio (= de própria iniciativa), Mitis Iudex Dominus Iesus sobre algumas questões referentes ao processo de nulidade matrimonial, de modo que importa conhecer o teor do documento, não sem antes tecermos algumas reflexões gerais sobre o Sacramento do Matrimônio.
O matrimônio aparece, já no Antigo Testamento, como uma instituição divina natural, cujo modelo é a indissolubilidade (Gn 2,23s), de modo que a aliança matrimonial se tornou imagem da aliança de Deus com seu povo, Israel (cf. Os 1,3; Is 5,1-7; Jr 2,20-25; Ez 16; Ct todo), sempre monogâmica, haja vista que a bigamia é da linhagem do pecado, conforme ocorre com Lameque e suas mulheres, em Gn 4,23s. O Senhor Jesus, no Novo Testamento, retoma, ao contrário das prescrições da antiga lei, o caráter primeiro da indissolubilidade matrimonial seguido pelos Apóstolos e os Padres da Igreja (cf. Mc 10,11s; Lc 16,18 e 1Cor 7,10s). Mesmo parecendo estranha nos tempos de Jesus, a indissolubilidade há de ser compreendida não simplesmente apenas como a mera união de um homem e uma mulher, mas, sim, como um Sacramento – que de fato é – no qual o esposo representa Cristo e a esposa, a Igreja (Ef 5,21-33).
Certo é que alguns, apoiados pretensamente em Mt 5,32 e 19,9, tentam negar que o casamento seja indissolúvel e digam que aí o Senhor Jesus permite a separação e até segundas núpcias, quando, na verdade, bons teólogos respondem que todos os textos bíblicos referentes ao matrimônio devem ser lidos à luz de Mc 10,10-12; Lc 16,18 e 1 Cor 7,10s.39 e Rm 7,2-9. Mais: Mt 5,32 reconhece, de fato, uma separação legítima se entendida “em caso de adultério ou fornicação”, mas para aí, dado que, logo adiante, acrescenta ser adultério se casar com a repudiada. Nega, assim, segundas núpcias. O mesmo está em Mt 19,9. Acrescente-se, ainda que em Mt 5,32 e 19,9 o Senhor Jesus fala de uniões incestuosas proibidas já pelas leis do Antigo Testamento (cf. Lv 18) por se oporem à Lei de Deus (cf. E. Bettencourt, OSB. Iniciação teológica. Rio de Janeiro: Mater Ecclesiae, 2013, p. 281-282).
Essa lei divina da indissolubilidade matrimonial passou para o Código de Direito Canônico que assim reza no cânon 1141: “O matrimônio ratificado e consumado não pode ser dissolvido por nenhum poder humano nem por nenhuma causa, exceto a morte”. Daí alguns poderiam perguntar: mas e a lei humana do divórcio? A respeito disso, responde já São João Crisóstomo: “Não apeles para as leis promulgadas pelos que estão fora... Naquele dia, Deus não te julgará por essas leis, mas por aquelas que Ele mesmo promulgou” (Comentário sobre 1Cor 7,39s). Em outras palavras: devemos obedecer a Deus antes que os homens (cf. At 5,29).
Portanto, fique claro que a Igreja não aceita o divórcio por fidelidade à Palavra de Deus que Lhe cabe tutelar e nunca alterar, segundo o Catecismo da Igreja Católica n. 1638-1640: “Do Matrimônio válido origina-se entre os cônjuges um vínculo de sua natureza perpétuo e exclusivo: no matrimônio cristão, além disso, são os cônjuges robustecidos e como que consagrados por um sacramento peculiar para os deveres e dignidade do seu estado”.
“O consentimento, pelo qual os esposos mutuamente se dão e se recebem, é selado pelo próprio Deus. Da sua aliança ‘nasce uma instituição, também à face da sociedade, tornada firme e estável pela lei divina’. A aliança dos esposos é integrada na aliança de Deus com os homens: ‘O autêntico amor conjugal é assumido no amor divino’.”
“O vínculo matrimonial é, portanto, estabelecido pelo próprio Deus, de maneira que o matrimônio ratificado e consumado entre batizados não pode jamais ser dissolvido. Este vínculo, resultante do ato humano livre dos esposos e da consumação do matrimônio, é, a partir de então, uma realidade irrevogável e dá origem a uma aliança garantida pela fidelidade de Deus. A Igreja não tem poder para se pronunciar contra esta disposição da sabedoria divina.”
O que Ela permite é que em alguns casos específicos explicitados nos cânones 1151-1155, nos quais os casais não consigam conviver juntos, possa haver uma separação temporária ou perpétua, mas que não quebra o vínculo do casamento (cf. Catecismo da Igreja Católica n. 1649).
Fora disso, o que existe, na Igreja, é a “declaração de nulidade”, ou seja, depois de concluídos os devidos trâmites legais, a autoridade eclesiástica competente torna público que, apesar de todas as aparências externas, nunca houve, realmente, o sacramento do Matrimônio naquele caso em questão. Evite-se, pois, falar que a Igreja anula casamentos, dado que isso significaria desfazer, destruir o vínculo matrimonial, contrariando a Palavra de Deus, ao passo que declarar nulo implica apenas tornar público que nunca houve, embora alguns pudessem pensar que sim, um casamento.
Pois bem: para que um matrimônio seja reconhecido nulo, há três tipos de causas maiores. Tais sentenças só são publicadas após o devido processo canônico que tem buscado levar em conta os avanços da Psicologia em nosso tempo. Ei-las 1) as falhas de consentimento matrimonial (cânones 1057 e 1095-1102); 2) os impedimentos dirimentes (cânones 1083-1094) e 3) a falta de forma canônica (cânones 1108-1123).
Ora, o Santo Padre não retocou essa parte do Código de Direito Canônico, de modo que as causas de nulidade continuam as mesmas promulgadas em 1983. O que Francisco fez foi ajustar a forma de como o processo é conduzido na Igreja (cf. cânones 1671-1691) visando, nos casos em que o matrimônio é considerado nulo, um processo mais rápido, porém não mais fácil do ponto de vista jurídico-canônico em si, muito menos tentando burlar a doutrina imutável da Igreja.
Aliás, os apresentadores do Motu proprio fizeram questão de destacar que o processo de nulidade nem será mais fácil, mas sim, mais rápido. O Bispo diocesano será o Supremo Juiz de tais procedimentos judiciais, permanecendo a possibilidade de se recorrer à segunda instância (Arquidiocese) ou à Rota Romana, caso haja alguma dúvida importante, reforçando assim a ligação entre as Igrejas particulares e a Sé de Pedro. Os procedimentos serão, finalmente, gratuitos para os cônjuges recorrentes, permanecendo a remuneração equitativa dos operadores dos tribunais, ou seja, não haverá processos meramente gratuitos, porque há custos que devem ser suportados por Demandante e Demandado.
No entanto, longe de contentar aqueles que julgam ser o casamento uma mera forma protocolar que poderia ser desfeita pela pura vontade dos cônjuges, como se ele não tivesse implicações sociais, reafirma-se o seguinte: “as causas de nulidade do matrimônio sejam tratadas por via judicial e não administrativa, não porque seja exigido pela natureza da coisa, mas porque o exige a necessidade de guardar no máximo grau a verdade do sagrado vínculo: e isso – destaca o Papa – é exatamente garantido pelo poder judiciário”. Portanto, nada de banalizações!
Para evitá-las é que o Papa coloca, apesar de toda a seriedade dos membros do Tribunal Eclesiástico, clérigos ou leigos, a decisão final nas mãos do Bispo diocesano que, em sua Diocese, é a máxima autoridade judiciária – aí nem as Conferências Episcopais podem intervir – e, como sucessor dos Apóstolos, o Bispo está em união com a cabeça do Colégio Apostólico, o Papa, sob o qual atua na unidade da Igreja.
Outro ponto da reforma é, como dito, a gratuidade dos processos: “seja garantida a gratuidade dos procedimentos para que a Igreja, em uma matéria tão estreitamente ligada à salvação das almas, manifeste o amor gratuito de Cristo, pelo qual todos foram salvos”, ainda que todos os funcionários – clérigos e leigos – do Tribunal Eclesiástico recebam seus justos salários, como sempre receberam. A Igreja local há de encontrar um modo de resolver, na prática, essa questão.
O documento estabelece também a sentença única de nulidade, no lugar do critério da “dupla decisão” (antes ia, obrigatoriamente, para a segunda instância), para que “seja suficiente a certeza moral alcançada pelo primeiro juiz em conformidade com o direito”. Assim, a transferência da responsabilidade das causas nas mãos do Bispo, constituído como “único juiz”, que “no exercício pastoral do próprio poder judicial deverá garantir que não se caia em nenhum laxismo”. Mais se uma das partes recorrer ou o Defensor do Vínculo o processo deverá, necessariamente, subir para o Tribunal de Segunda Instância.
Portanto, as mudanças no processo se resumem: 1) ao procedimento gratuito para os casos diretamente analisados pelo Bispo Diocesano, já que nos processos ordinários nada se modificou; 2) à decisão em única instância, salvo o recurso do Defensor do Vínculo ou mesmo de uma parte; 3) a intervenção do próprio Bispo Diocesano como autoridade judiciária mor em sua Diocese, e 4) um processo breve, isso nos casos previstos pelo “Motu Proprio”. Parece, assim, que o Papa Francisco, atendendo ao apelo do Episcopado de diversos países, tenta aplicar a máxima do Direito Canônico que vê como objetivo maior da lei eclesiástica a salvação das almas (cf. cânon 1752) e não a opressão de quem quer que seja por um eventual juiz atemorizador. Ele crê no auxílio de um Pai cheio de misericórdia, conforme lembram as primeiras linhas do seu escrito na promulgação dessas normas. Eu mesmo, em março de 2013, enviei uma carta ao Papa Francisco, recentemente eleito, pedindo-lhe modificações e simplificações nos processos de nulidade matrimonial.
Cabe, no entanto, retomar aqui, a título de conclusão, um desafio à Igreja hoje, que é a formação das famílias, especialmente dos adolescentes, especialmente dos namorados e noivos para que vivam como testemunhas de Cristo na sociedade. Isso foi, aliás, pedido pelos Bispos no Instrumento de trabalho do Sínodo, em 2014, e tem aparecido, graças a Deus, nas diversas Dioceses em seus Planos de Pastorais. Afinal, não nos esqueçamos de que a família é a célula mãe da sociedade e que o futuro da humanidade passa pela família tal como foi sonhada por Deus.
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