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A santidade do homem no mundo dessacralizado
Por: DOM EURICO DOS SANTOS VELOSO
ARCEBISPO EMÉRITO DE JUIZ DE FORA, MG.
 
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Terminadas as festas pascais, a liturgia do tempo comum nos leva a considerar a caminhada do homem santificado no mundo enquanto espera a plena revelação dos filhos de Deus. 

Podemos considerar o mundo como a seara de Deus, a nós homens concedida para desenvolvê-la e organizá-la. Foi assim que, no Paraíso, depois de ter criado todas as coisa e visto que eram boas, no refrão repetido: “E Deus viu que isto era bom”(Gen. 1), entregou-as ao homem, criado a sua imagem e semelhança para que elas  o servissem.
 
Acontece que, diante do pecado, as potências da natureza, indomáveis, revoltam-se contra o homem, e este queda-se perante elas e a elas se subjuga entregando-se, em verdadeiro culto de latria, a adoração das suas forças, o sol que domina o dia, a lua e as estrelas. Diviniza suas paixões e virtudes na figura de deuses e deusas e curva-se diante das obras de suas mãos que, como reza o salmo, têm boca e não falam, ouvidos e não ouvem, olhos e não vêem.(Cf. Salmo 113)

Dominado pelo medo e terror, o homem sacraliza as criaturas. São coisas sagradas, intocáveis, capazes de atrair a maldição ou a benção para quem as toca ou as viola.

Arraigado fortemente na consciência humana esses sentimentos perduram na história e perpassaram os séculos, mesclando-se nas diversas civilizações que se sucederam até aos dias atuais quando a evolução do conhecimento religioso, sócio, técnico, científico desmascara a crendice e a ingenuidade.

Fenômeno positivo, não há dúvida. A fé a isso impulsiona. Já Abraão, nascido no meio desses povos, retirou-se de seu meio e, nas estepes do deserto, encontrou-se com seu Deus, Ser transcendente e presente que dominava as grandezas do Universo, que com ele dialogava e apontava na sua descendência a esperança. Não mais o pavor domina aquele que, filho de Abraão, considera o universo com a responsabilidade de filho e não com os olhos de um escravo.
 
O mundo foi entregue ao homem para que, com sua liberdade criadora  nele construa sua pátria terrestre,  santificando todas as coisas,  santificando-se a si próprio, deixando-se encher do Espírito de Deus.

No processo de dessacralização, o mundo, a civilização se opõe ao sacro. Nas religiões e culturas sacras  predomina não só a crença na existência de espíritos bons e maus e a presença de forças ocultas e misteriosas  acompanhada de  ritos e tabus. Nada constrói senão a geração do medo, do pavor e do pânico. Essa cultura entrou em crise.

A crise do sacro, porém, pode levar à crise da religiosidade e à crise de fé.  O excesso de racionalização pode, por um fenômeno muito comum na nossa natureza humana, ao desconhecer ou negar a fé, ressacralizar o mundo e de modo até mais sofisticado e perverso em novas formas de crenças e culto que repugnam a inteligência.

A fé abraâmica é o meio seguro de conduzir o homem à sua dignidade, dando-lhe a consciência do plano divino de restaurar em Cristo todas as coisas, como nos ensina São Paulo. Nada é sagrado, mas tudo deve ser santo. A nossa santidade pode ser expressar pela nossa busca de identidade com Deus. “Sede santos, como vosso Pai é santo”.

Regenerados pelo batismo para vida nova da filiação divina, participantes até da mesma natureza divina, com a encarnação e glorificação do Filho de Deus, nela introduzidos pelo amor de Deus. (Cf. Col.2,9). Somos  santos.  Somos o novo Adão de que fala São Paulo, o homem espiritual que deve continuar a obra da criação, realizando o novo céu e a nova terra redimidos pelo sangue redentor de Cristo.

Teillard de Chardin via todo o universo em sua revelação final impregnado do Espírito de Cristo.(La messe sur le monde) Na sua evolução, ensina Paulo, todas as criaturas estão a espera da manifestação dos filhos de Deus.(Cf. Rom.8,19)

Esse processo de santificação pessoal, podemos interpretá-lo como o domínio do homem sobre a natureza e submissão de si a Deus. Recebendo, pelo sacramento, a participação no múnus profético,  real e sacerdotal de Cristo, o cristão santificado  deve exercê-lo na santificação do  mundo.

Não são mais as forças naturais e suas paixões os seus deuses que nos devem apavorar. Denunciados pelo exercício da missão profética e colocados ao império do homem redimido por uma inteligência esclarecida pela fé, são por  nós santificados, para serem apresentados por Cristo ao Pai numa oferenda perfeita.



 
 
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