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Recomendações paternas
Por: DOM EURICO DOS SANTOS VELOSO
ARCEBISPO EMÉRITO DE JUIZ DE FORA, MG.
 
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As lembranças da infância são-nos, muitas vezes, caras, agradáveis, reportam-nos a instantes e lugares que marcaram nossa vida, pelo ambiente e pelas pessoas que conosco vivenciaram tão significativos momentos.

Quando evoco as lembranças paternas, vem-me à mente muito mais do que o convívio familiar. Resgato, dos alegres dias de minha juventude – tão diferente dos que vivem a juventude atual –, todos os ícones que marcaram nossa formação como cidadão e, principalmente, como sacerdote.

Foi por essa época, já se vão cinco décadas, que sentimos a partida de um dos grandes homens do século XX, um dos luminares de toda a história do Cristianismo, cuja memória se há de reverenciá-la pelos séculos futuros: o Papa Pio XII, falecido no dia 9 de outubro de 1958. Figura austera, imagem ascética, porte nobre, de gestos largos, sorriso amável, alocução cativante, magistério seguro, mártir de uma má interpretação histórica, tornou-se figura polêmica, por causa da prudência peculiar dos sábios e do silêncio, apanágio dos santos.

E nas antevésperas de seu natal para a eternidade, deixa-nos sua última encíclica “Meminisse juvat”, recomendando orações públicas durante a Novena da Assunção pela paz do mundo e liberdade da Igreja. Ele que vivera, nos primeiros anos de seu pontificado, os mais acres dias, durante a Segunda Grande Guerra, assistia, impotente, no ocaso de sua existência, à Guerra Fria. Era mais cruel do que a tirania do Reich Hitleriano, porque a tirania nazista era assistida por todos, enquanto a crueldade por detrás da cortina-de-ferro ninguém a testemunhava, senão suas próprias vítimas. Eram milhões de cristãos em campos de concentração, padres e bispos confinados, ora em celas solitárias, ora submetidos a trabalhos pesados, sob vigilância constante, à força e alimentação escassa. Eram pessoas cerceadas do direito de professar a sua fé, de estar junto aos seus, de pensar, de criar. O facinoroso regime socialista cometia livre e impunemente as mais cruéis atrocidades no leste europeu, enquanto o mundo permanecia silente.

Havia, entretanto, uma grande diferença entre o silêncio do Papa e o silêncio do mundo. O Pontífice o adotava por prudência, enquanto envidava todos os esforços para aliviar o sofrimento daquele povo subjugado à sanha do sistema vigente no leste europeu. O mundo, ao contrário, se calava por covardia. Era mais fácil, pois nada se via. Os gemidos de quantos sofriam sob aquele regime não se os escutavam nos outros quadrantes da terra; eram sufocados pela tirania dos asseclas de Stalin.

Ao redigir sua 39ª encíclica, Pio XII teceu nas linhas de “Meminisse juvat” as recomendações de um pai que já pressentia o instante do desenlace com o mundo. Aproximava-se o instante em que deixaria o governo do Reino de Deus, que lhe incumbira a ação do Espírito Santo, para adentrar-se no Reino do Céu. E naquele instante suas intenções se voltavam para seu rebanho, vítima das transformações sociais e culturais que se sucederam à Grande Guerra, e especialmente às vítimas do holocausto dos cristãos pelos socialistas.

Por isso, neste instante, em que reverenciamos a memória do Pastor Angélico, tomemos suas palavras, cujos conselhos são-nos assaz propícios neste instante. São muitos os perigos que colocam em risco a salvação de cada um de nós. Como naqueles dias, as forças e as instituições dos homens não são colocadas no seu justo lugar, “ou é positivamente suprimida a autoridade de Deus - que ilumina as mentes com os seus mandamentos e as suas proibições, e que é princípio e garantia da justiça, fonte da verdade e fundamento das leis”. (MEMINISSE JUVAT - I,3).

Nesse seu Testamento Espiritual, Pio XII alenta-nos a buscar na religião cristã, que “ensina essa verdade plena, essa justiça perfeita e essa caridade divina que elimina ódios, animosidades e lutas”, se quisermos “formar uma sociedade sólida, justa e equitativa”. Recomendações tão oportunas neste limiar do século XXI, enquanto assistimos uma corrupção em todos os sentidos e em todos os setores e instituições, indistintamente. A família, a sociedade, a administração pública, a Igreja, nenhum destes estão imunes dos ataques que, à custa de manifestações culturais, adequações ideológicas, relativização dos conceitos, além da sufocante ganância capitalista, vão corrompendo princípios e valores.

Peço, portanto, aos nossos padres, religiosos e fiéis que rezem muito e se empenhem a uma reforma cristã de costumes. Se cada um começar a empreender esta obra de restauração em Cristo, dentro de sua casa, em família, não tardará se verificar essa obra se estender pela comunidade e, permita Deus, em toda a sociedade.

Ao findar sua Carta, Pio XII reporta-se à célebre Epístola a Diogneto, que tanto ainda nos serve como lição: “Os cristãos... estão na carne, mas não vivem segundo a carne. Habitam na terra, mas têm a sua cidadania no céu. Obedecem às leis aprovadas, e com o seu teor de vida superam as próprias leis. Amam a todos, e todos os perseguem. São ignorados e condenados; são mortos e sentem-se vivificados... são escarnecidos, e entre as ignomínias adquirem glória. A sua fama é lacerada, e é tornada testemunho da sua justiça... Comportam-se como gente honesta, e são punidos como malfeitores; enquanto são punidos, alegram-se como aqueles que se sentem vivificados...) Em suma, para exprimir tudo isso brevemente, aquilo que no corpo é a alma, isso são no mundo os cristãos”.

Eis, pois, o perfil do cristão.

Procuremos sê-lo o mais perfeito possível, não por nosso mérito, mas para a maior glória de Deus. Com o auxílio constante da Virgem Maria, alcançaremos a graça de sermos homens bons, cristãos autênticos, discípulos exemplares, missionários de Cristo.



 
 
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