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Convite ao eclesiocentrismo
Por: Pe. Elílio de Faria Matos Júnior
Vigário Paroquial da Paróquia Bom Pastor
Juiz de Fora, MG
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O Cardeal Giacomo Biffi, arcebispo emérito de Bologna, faz um convite insuportável aos ouvidos que se consideram avançados e atualizados em matéria teológica: trata-se de um convite ao eclesiocentrismo. O quê? Isso mesmo. Um convite ao eclesiocentrismo. É o que podemos ler, estudar e meditar em seu livro sobre eclesiologia - La Sposa chiacchierata: invito all’ecclesiocentrismo -, que ganhou uma tradução portuguesa sob o título Para amar a Igreja.Belo Horizonte: Centro de Cultura e Formação Cristã da Arquidiocese de Belém do Pará / Editora O Lutador, 2009.

O motivo que leva o competente teólogo e zeloso bispo da Igreja Giacomo Biffi a fazer um convite assim tão «desatual» é o seu amor pela verdade revelada em Cristo. A teologia para Biffi não se deve ocupar com discursos divagantes sobre hipóteses humanas, não deve fazer o jogo do «politicamente correto», mas deve, isto sim, contemplar a «res», isto é, a realidade que corresponde ao desígnio do Pai. E com relação à verdade, tão impugnada por nossa cultura relativista e niilista, Biffi, com a visão e profundidade de um homem que sabe cultivar a interioridade da alma humana, assegura: «A verdade não é um luxo: de algum modo, cada um precisa chegar a ela agora, nestes poucos anos que nos são dados». A caridade, que deve ser o princípio do agir cristão, não é de modo algum alheia à verdade, de modo que podemos dizer que «o grau mínimo do amor é justamente a homenagem incondicional à verdade».

Ora, na perspectiva da teologia que busca compreender e contemplar a verdade sobre o desígnio do Pai, deve-se dizer que «não é exagero considerar que a eclesiologia é a pedra angular mais evidente e mais imediata da ortodoxia cristã e da qualidade de uma teologia: na concepção que se tem da Igreja vem a refletir-se a concepção que se tem de Jesus Cristo, do seu desígnio salvífico, da imagem do homem e, portanto, do próprio método teológico». Poderíamos mesmo afirmar: «Dize-me qual é a tua concepção de Igreja, e eu te direi que tipo de cristão és».

Giacomo Biffi, logo de início, esclarece que rejeita a «eclesiolatria», isto é, a concepção segundo a qual a Igreja seria pensada e «adorada» como sede independente e autônoma da verdade ou como causa primeira de nossa salvação. Tal concepção é manifestamente errônea e, como tal, nunca foi ensinada pelo magistério eclesiástico. A Igreja, na verdade, deve ser comparada à lua, que recebe do Sol, que é Cristo, toda sua luminosidade. «A Igreja – ensina Santo Ambrósio - refulge não pela própria luz, mas pela luz de Cristo, e toma o seu esplendor do Sol da justiça». Se «eclesiocentrismo» significa «eclesiolatria», não há espaço para ele numa autêntica teologia cristã, pois que «não existe na Igreja nada de santo, nada de positivo, nada de qualquer forma apreciável que seja autonomamente seu: tudo nela derivou do Senhor Jesus, tudo é reflexo da beleza e da plenitude do único Salvador».

Não haveria, porém, um correto entendimento da palavra «eclesiocentrismo»? O Cardeal Biffi diz que sim, e mostra o porquê. Cristo, na verdade, é quem deve estar no centro, pois que é o único Salvador e Mediador entre Deus e os homens. É o centro da criação, pelo qual e no qual «foram criadas todas as coisas nos céus e na terra» (Cl 1,16) e «reconciliadas» (Cl 1,20) Deve-se, pois, afirmar sem titubeios o «cristocentrismo», no sentido de reconhecer que «na humanidade do Filho de Deus encarnado o princípio objetivo (ou melhor, ontológico) da criação inteira, em todos os seus níveis e dimensões». Mas o «Christus totus» é o Cristo acompanhado de seu corpo místico, que é a Igreja. Cristo sem sua Igreja, que é a parcela do mundo atingida pela renovação da graça, é um truncamento pernicioso. Ele é «a cabeça do corpo da Igreja» (Cl 1, 18). Desse modo, se se compreende bem o cristocentrismo, compreende-se também como a Igreja possa e deva ocupar uma «relativa centralidade».


Os que rejeitam o eclesiocentrismo ou a relativa centralidade da Igreja, explica Biffi, rejeitam-no não para afirmar a centralidade de Cristo, que é sempre inseparável de sua Igreja, mas para sustentar que o «mundo» é que deve ocupar a centralidade e ser posto como realidade primordial em relação à Igreja. A rejeição do eclesiocentrismo baseia-se, no fundo, numa «cosmolatria», numa concepção que exalta o mundo e diminui a Igreja. O princípio teológico clássico, nem sempre bem entendido, segundo o qual «fora da Igreja não há salvação» (Concílio do Latrão IV), é facilmente substituído por um outro, julgado mais moderno e atual, que assim reza: «fora do mundo não há salvação» (E. Schillebeeckx).

Com efeito, o eclesiocentrismo bem entendido é a alternativa ortodoxa a toda e qualquer «cosmolatria», pois que é incompatível com toda «exaltação» do mundo. O eclesiocentrismo é hoje rejeitado porque parece que só se pode falar bem do mundo e mal da Igreja; de outro modo, somos tachados de «pré-conciliares». «E, na realidade, é preciso reconhecer que São João, São Paulo, São Tiago – que fazem do “mundo” destinatário de repetidas condenações – escreveram antes do Concílio Vaticano II». Vigora atualmente na mente de muitos teólogos e pastoralistas, ainda que sem fundamento na Escritura e na Tradição, «a idéia de que pelo “mundo” a Igreja possa ser iluminada, e os discípulos de Jesus possam pelo “mundo” ser guiados à salvação ou ao menos espiritualmente enriquecidos».. Ora, o «mundo» pelo qual o Senhor não rezou (cf. Jo 17,9) e que nós somos chamados a não amar (cf. 1Jo 2,15) condensa uma existência afastada de Deus e contrária a seus desígnios. Não podemos ser ingenuamente otimistas com relação ao «mundo», a ponto de não reconhecer que nele atuam real e eficazmente forças obscuras e contrárias a Deus. O livro do Apocalipse fala sobejamente da luta travada na história entre as forças do bem e as do mal. Santo Agostinho diz a mesma coisa com os conceitos de «cidade de Deus» e «cidade terrestre» em constante litígio entre si. A «adoração» do mundo é fruto do otimismo ingênuo que tem vigorado na mentalidade dos católicos nas últimas décadas. Fruto desse mesmo movimento é a relativização ou marginalização da Igreja.

É verdade que a Escritura toma a palavra «mundo» em um sentido positivo. Assim, está dito que «de tal modo Deus amou o mundo, que lhe deu seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna» (Jo 3,16). O «mundo» aqui é a humanidade à espera de salvação e amada por Deus. Ora, mesmo tomando o vocábulo «mundo» nesse sentido positivo, como a humanidade a quem está endereçada a salvação, e desde que não se esqueça de que a Igreja é já a humanidade alcançada pela efusão pentecostal, «não se vê como negar à Igreja a importância e a centralidade no desígnio de Deus». O mundo dever tornar-se Igreja, já que na Igreja o mundo alcança o fim para o qual foi criado. A Igreja, por sua vez, como atuação sacramental do Reino neste mundo, irá consumar-se por ocasião da manifestação plena e definitiva do Reino de Deus.

Destarte, podemos entender estas sábias palavras do Cardeal Biffi: «A Igreja não é chamada a “mundanizar-se”, é o mundo que deve mudar-se no Reino. E uma vez que, como nos ensina o Concílio Vaticano II, a Igreja é já a atuação sacramental do Reino (Lumen Gentium, 3: “Ecclesia seu Regnum Dei iam praesens in mysterio”), ela não pode ser pensada a não ser como a meta última da ação divina e a “forma” definitiva da criação». Já o Pastor de Hermas, que escreveu em Roma no séc.. II, reconhecia que «Deus, que habita nos céus, do nada criou os seres, os multiplicou e os fez crescer em vista da sua santa Igreja».

O melhor serviço, pois, que como cristãos e católicos podemos prestar ao mundo não consiste certamente em sempre lhe dar aquilo que lhe agrada, mas em proporcionar-lhe com humildade e caridade o conhecimento de Jesus Cristo, até que as fronteiras da Igreja, corpo místico de Cristo, e as do mundo possam coincidir, atingindo, assim, o mundo a finalidade para a qual foi criado. Não sem razão, Sua Santidade o Papa Bento XVI exortou os bispos brasileiros a promover «uma evangelização em que Cristo e a sua Igreja estejam no centro de toda explanação».



 
 
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