Entre a morte e a Ressurreição
Tempo e eternidade |
Por: Pe. Elílio de Faria Matos Júnior
Vigário Paroquial da Paróquia Bom Pastor
Juiz de Fora, MG |
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Vejamos em primeiro lugar, o que Ratzinger tem a nos dizer sobre a questão relativa ao tempo e à eternidade. Será que, como os proponentes da nova concepção escatológica dizem, o homem, ao deixar este mundo pela morte, entra na eternidade tout court? Ratzinger diz que esta tese é sustentada por muitos teólogos católicos, que, “apoiando-se no pensamento de E. Troeltsch e de K. Barth, acentuam a incomensurabilidade total entre tempo e eternidade. Quem morre sai do tempo e penetra no 'fim do mundo', que não é o último dia dos calendários, mas algo de diferente de nosso tempo”.
Não haveria, pois, tempo intermediário entre a morte e a ressurreição. O “estar com Cristo” de Fl 1,23 logo após a morte seria idêntico à ressurreição e o “fim dos tempos”. Assim, a ressurreição e o “fim dos tempos” se dariam na morte mesma. Esta tese da ressurreição na morte foi elaborada para resolver a dificuldade de outra tese, a de que o homem todo desaparece na morte, o que apresentava o grave problema a respeito da permanência da identidade entre quem desaparece e quem ressuscita. Todavia Ratzinger julga que a tese da ressurreição na morte não deixa, ela também, de apresentar sérias dificuldades. Ela postula, como vimos, que, saindo o homem do tempo, entra ele na eternidade. Mas ouçamos os questionamentos de Ratzinger:
“É verdade que não existe alternativa além do tempo físico e do não-tempo, identificando-se este com a eternidade? É logicamente admissível transladar o homem ao estado de pura eternidade, tendo ele passado como tempo o decisivo da existência? Pode ser eternidade de verdade uma eternidade que começa? Algo que começa não é, por isso mesmo, necessariamente não-eterno, temporal? E pode-se negar que a ressurreição do homem tenha começo, concretamente, depois da morte? Se se negasse isso (a ressurreição depois da morte), seria logicamente forçoso situar o homem na esfera da eternidade enquanto ressuscitado desde sempre, com o que se suprimiria toda antropologia séria, caindo, de fato, naquele platonismo caricaturesco que é, antes de tudo, o que se queria combater”.
A nova tese, segundo Ratzinger, cai no dualismo que queria combater. Seguindo sua lógica até as últimas conseqüências, a nova tese nos leva a postular duas esferas na ordem do criado radicalmente distintas, incomensuráveis e, sem embargo, coexistindo. A história do mundo estaria, ao mesmo tempo, encerrada e continuando, isto é, haveria uma história consumada por detrás da história que se faz: um dualismo imperdoável, que impediria a consumação do próprio Universo, que segue sua caminhada, ao lado de uma história já consumada para os que morreram, sem jamais poder atingi-la. São palavras de Ratzinger:
“Como se explica que a história tenha chegado a seu termo em alguma parte (menos em Deus!), quando, na realidade, ela continua sua caminhada? A noção fundamental, em si correta, da incomensurabilidade entre este mundo e o outro não foi, porventura, indevidamente simplificada, e isto a ponto de chegar às raias do mal-entendido? (com efeito, não de deveria falar de eternidade a não ser a propósito do próprio Deus). Que futuro se pode esperar para a história e para o universo? Chegarão eles um dia juntos à sua realização total ou subsistirá um eterno dualismo entre o tempo e a eternidade, que o tempo jamais atingirá?”.
Para Ratzinger a eternidade, como posse total e simultânea do todo, é própria apenas de Deus. Somente em Deus há o eterno presente que contempla todas as coisas em um único instante. À criatura é vedada a eternidade tout court. Em primeiro porque não há eternidade que tenha começado. Ora, toda criatura tem um começo.
A criatura está sempre no tempo, pois não pode ser senhora total e simultaneamente de uma vida sem começo e sem fim. Nem mesmo a morte introduz o homem na eternidade em que não há passado ou futuro. O homem sempre terá um passado e um futuro, e o seu presente não abarca de um só golpe de vista ambas as coisas.
Mas qual a natureza da temporalidade que cabe ao homem? Ratzinger diz que esta questão é estritamente antropológica, e não podemos tomar como modelo um outro ser que não o homem. Trata-se de determinar a temporalidade que cabe ao homem enquanto homem. “Analisando esta questão, vê-se que a temporalidade se dá no homem em distintos níveis e também de distintas maneiras”.
O homem, enquanto corpo, participa do tempo físico, cujos parâmetros se dão conforme a velocidade de rotação de certos corpos, como o sol. Enquanto corpo vivo, participa da temporalidade própria do ritmo biológico. Acontece, porém, que o homem não é só corpo segundo Ratzinger; é também espírito, e, como tal, assume o tempo físico e biológico, elevando-os ao nível da consciência, dos atos espirituais. Estes são também temporais, pois trazem as marcas do tempo físico e biológico, mas num nível distinto e de um modo mais profundo.
Tais atos espirituais humanos, temporais, são esclarecidos por Ratzinger pelo recurso à concepção agostiniana do tempo como presente do passado, presente do presente e presente do futuro. O passado e o futuro no homem se fazem presentes no presente da memória, mas sem a atualidade que é própria do presente. A temporalidade humana têm ainda, frisa Ratzinger, outra nota essencial: a relacionalidade, isto é, o homem só se faz ele mesmo em virtude de seu ser-com-os-outros e em-ordem-aos-outros.
Desse modo, pode-se dizer que há um tempo antropológico, que Ratzinger, valendo-se de Agostinho, chama de “tempo da memória”. Isso significa que, ao sair do tempo do bíos, o homem se desliga do tempo do físico, do biológico, caindo no puro tempo da memória, sem, contudo, atingir a eternidade. O tempo da memória não é eternidade. O homem continua submetido a esse tempo psicológico.
Destarte, a história, que para ele se encerrou, de algum modo, com a morte, não lhe é estranha, porque ele não atinge o “fim dos tempos” enquanto a história continua seu curso. A história em curso é algo real para ele. A rede de relações, que está na essência mesma do homem, o mantém vinculado ao curso real dos acontecimentos do mundo à espera de sua consumação em Deus. Assim, é preservada a seriedade e a importância da história que está acontecendo, o que não seria possível se afirmássemos que o homem entra na eternidade após a morte.
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