Entre a morte e a Ressurreição
A morte e a ressurreição |
Por: Pe. Elílio de Faria Matos Júnior
Vigário Paroquial da Paróquia Bom Pastor
Juiz de Fora, MG |
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Depois desta breve introdução, é hora de irmos ao tema: “Entre a morte e a ressurreição”, que, como dissemos, tratará da relação existente entre uma coisa e outra na visão teológica de Ratzinger.
Antes do mais, cumpre notar que houve uma mudança de direcionamento no pensamento de Ratzinger, mudança essa confessada por ele mesmo no prólogo de sua Escatologia:
“Faz exatamente vinte anos que ensinei pela primeira vez Escatologia no ciclo de minhas aulas. Desde então tive de ocupar-me periodicamente das questões que a disciplina levanta. A escatologia é juntamente com a eclesiologia o tratado que mais vezes expliquei e o primeiro que me atrevo a oferecer ao público na forma mesma de tratado. Com esta matéria ocorreu-me algo singular. Atrevi-me começar com as teses – raras ainda naquele tempo – que acabaram por impor-se hoje quase sem exceção no campo católico. Isto é, o que tentei foi elaborar uma escatologia 'desplatonizada'. Quanto mais me ocupava com as questões, quanto mais penetrava nas fontes, com tanto mais força se desmoronavam as antíteses elaboradas e com tanto mais claridade se via a lógica interna da tradição eclesial. Por conseguinte, o resultado que apresento, fruto de decênios de trabalho, se contrapõe, mas por razões opostas às de então, à opinião hoje corrente. Hoje estou fazendo frente à opinião geral, mas no sentido inverso de como o fiz com meus primeiros intentos. E não é por espírito de contradição, senão porque o fundo mesmo do problema me levou a isso”.
Em outras palavras, Ratzinger diz que foi um dos pioneiros a apresentar um novo modo de encarar o estudo da escatologia, modo esse qualificado como “desplatonização”; ele queria tirar as influências do platonismo do estudo da escatologia, pois via na tradição eclesial um ilegítimo casamento com o platonismo. Mas, quanto mais estudava a questão, mais se deixava convencer do sentido exato e profundo da tradição eclesial. A tese da “desplatonização” ganhou terreno no campo católico, mas Ratzinger se distanciou de suas pretensões em virtude de seus estudos e aprofundamentos.
Segundo a tradição eclesial, que se estende até nossos dias através, por exemplo, do Credo do Povo de Deus promulgado por Paulo VI e do Catecismo da Igreja Católica promulgado por João Paulo II e, ainda, do Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, este promulgado já por Bento XVI; segundo, pois, esta tradição, o homem, ser unitário porque criado tal como é por Deus, possui um elemento irredutível à pura matéria, núcleo profundo de sua personalidade, que subsiste após a morte do corpo, de tal forma que o “eu” do homem continua a subsistir.
Esse núcleo profundo da personalidade, a tradição o denominou “alma”, ainda que na Sagrada Escritura o termo alma seja usado com certa flutuação e em diversos sentidos. Mas como o homem completo, tal qual foi criado por Deus, consta não só deste núcleo pessoal, a alma, mas também do elemento material, que constitui a sua essência mesma, o eu humano, após a morte do corpo, não estará em sua completude enquanto não se vir reunido, de alguma forma, à matéria, o que precisamente constitui a ressurreição, esperada para o final dos tempos, por ocasião do arrematamento deste éon e sua transfiguração total no Reino de Deus.
A concepção classificada como platônica (porque hoje é altamente discutível se Platão teria realmente professado um dualismo ontológico) afirma que corpo e alma são substâncias totalmente distintas, cada qual completa em si mesma, unidas apenas extrínseca ou acidentalmente. A alma é aqui vista como o verdadeiro homem, enquanto que o corpo é uma prisão da qual o homem deve se libertar. A alma, que é espiritual e imortal, não pertence a este mundo; está aqui por causa de algum pecado cometido. Falar em ressurreição da carne, desse modo, é um contra-senso; a esperança na ressurreição é um absurdo porque não se pode colocar a esperança num retorno à prisão.
Aqui o que vale é a imortalidade da alma, não a ressurreição. Está por detrás dessa concepção um forte dualismo ontológico, segundo o qual o espírito é bom e a matéria não vale nada, é mesmo má. Essa doutrina penetrou na Grécia através do Orfismo, e não pode ser tida como grega sem mais. O dualismo, assim entendido, é incompatível com a doutrina cristã, e, como tal, nenhum teólogo católico o sustenta ou pode sustentá-lo. Interessante é notar que grandes traços desse dualismo apareceram no pensamento de Descartes, o pai da filosofia moderna, que não via senão uma ligação acidental entre a res cogitans e a res extensa.
Recentemente, isto é, no séc. XX, apareceu com vigor uma nova maneira de entender a morte: uma via alternativa que rejeita a concepção tradicional da Igreja e que se pretende mais fiel às origens cristãs ou à situação atual das ciências. Via esta que tem suas raízes nos teólogos protestantes Carl Stange (1870-1859) e Adolf Schlatter (1852-1938). Começou-se, então, a impugnar a tradição eclesial sobre a relação entre a morte e a ressurreição.
Tal impugnação, de início, teve como motivação básica um princípio de inspiração luterana: o homem não pode oferecer nada de próprio a Deus. Nesse sentido, a idéia de uma alma por si mesma imortal seria algo blasfemo, uma pérfida contaminação que a mentalidade grega impingiu na tradição cristã. Ratzinger diz que foi Oscar Cullmann quem colocou a questão de modo mais resumido e dramático com estas palavras: “Se hoje perguntarmos a um cristão, seja protestante ou católico, intelectual ou não, o que diz o Novo Testamento sobre a sorte individual do homem depois da morte, com poucas exceções a resposta será: 'a imortalidade da alma'. Nessa forma esta opinião representa um dos maiores equívocos do Cristianismo”. Cullmann dizia isso na década de 1960, quando os adeptos da nova doutrina eram ainda poucos.
Na morte, portanto, não só o corpo morreria, mas também a alma, o homem todo, e a ressurreição só se daria no fim dos tempos, conforme os testemunhos bíblicos. Estamos, assim, diante de um novo esquema escatológico: só ressurreição em lugar de imortalidade da alma e ressurreição. Contudo, tal solução apresenta graves dificuldades: se o homem todo desaparece na morte, Deus, sem dúvida, poderá criar um homem igual ao que sucumbiu, mas, então, já não se tratará do mesmo homem, não haverá entre ambos uma continuidade existencial.
A ressurreição seria uma nova criação, o que destrói o conceito mesmo de ressurreição. Tal doutrina, é interessante notar, não é absolutamente nova. Parece que vem confirmar o antigo adágio: nihil novi sub sole. No séc. II de nossa era, apareceu “o tnetopsiquismo de Taciano e de alguns hereges árabes que pensavam que o homem morria totalmente, de modo que nem a alma sobrevivia. A ressurreição final era concebida como nova criação a partir do nada, do homem que havia morrido”.
Diante das dificuldades apresentadas pela nova doutrina, elaborou-se um novo conceito de tempo e corporeidade. O “fim dos tempos”, o dia derradeiro, aquele da ressurreição, na verdade não é um dia que se deve aguardar, mas é o não-tempo. Pela morte o homem entraria na eternidade de Deus e, como para Deus não há tempo, o momento da morte coincidiria com o “fim dos tempos” e a ressurreição. Em outras palavras, a morte colocaria o homem fora do tempo, na eternidade de Deus em que o fim já está presente. Destarte, não é preciso esperar o último dia, pois a ressurreição se dá na morte, e se resolve, então, o problema acima mencionado da continuidade entre o que morre e o que ressuscita.
A corporeidade, por sua vez, não teria nada que ver com a matéria; esta não seria passível de glorificação, conforme as palavras de G. Greshake: “A matéria 'em si' (como átomo, molécula, organismo...) não pode chegar à consumação”. Corporeidade diria respeito a outra coisa: à individuação do ser humano pelas suas relações com o mundo e com ou outros. Tais relações que definem a personalidade é que ressuscitariam. Temos aqui a profissão de fé na ressurreição da pessoa, excluída a matéria.
Ainda mais uma vez, confirmando o adágio já citado – nihil novi sub sole -, podemos dizer que esse novo conceito de corporeidade não é nada novo como se pensa. A Comissão Internacional de Teologia, em sua obra “A esperança cristã na ressurreição: algumas questões de escatologia”, faz menção a “certos cristãos do séc. II que, sob a influência dos gnósticos, se opunham à 'salvação da carne', chamando ressurreição à mera sobrevivência da alma dotada de certa corporeidade”.
Contra tais cristãos insurgiu-se Tertuliano, que os chamou de novos saduceus, e Santo Ireneu, que os refuta enquanto “pessoas que não querem entender que, se fosse assim como dizem, o próprio Senhor, em quem dizem crer, não teria ressuscitado ao terceiro dia, mas expirando sobre a cruz, teria ido imediatamente para o alto abandonando o corpo na terra”. É que o realismo de Ireneu o leva a afirmar que a carne é o eixo da economia salvífica, uma vez que Deus fez o homem de carne e enviou o seu Filho na carne para salvar a carne.
A nova posição que postula a ressurreição na morte quis assegurar a identidade do homem, coisa que não conseguia a tese segundo a qual o homem todo desaparecia na morte para ressuscitar no fim dos tempos. Está suposto nesse modo de ver que sustenta a ressurreição no momento da morte uma nova concepção de tempo e de corporeidade, como vimos. Essa nova concepção hoje goza da anuência de muitos teólogos, inclusive católicos, apesar de uma notificação da Congregação para a Doutrina da Fé de 1979 em contrário.
Aliás, hoje ela domina o clima intelectual da teologia. O que levou a esta mudança tão rápida, já que, como notava Cullmann há ainda pouco tempo, os cristãos em sua maioria, quer teólogos ou não, professavam a imortalidade da alma e a ressurreição no fim dos tempos? Qual foi a causa de uma mudança assim tão rápida? Sabemos que inúmeros exegetas passaram a defender uma antropologia monista em nome da Bíblia, antropologia que desbancaria a tese clássica do tempo intermediário entre a morte e a ressurreição e a imortalidade da alma. Entretanto, segundo Ratzinger, não foi essa tentativa de volta às origens bíblicas a única causa. Uma séria análise dos testemunhos bíblicos em seu conjunto não permitiriam contradizer o ensinamento da tradição cristã.
A motivação principal da mudança, consoante Ratzinger, está no fato de que “agora o que se apresentava como bíblico, isto é, a absoluta indivisibilidade do homem, concordava com a antropologia moderna, sob a influência decisiva das ciências naturais. Esta antropologia encontra o homem totalmente em seu corpo, sem ser capaz de imaginar sequer uma alma separável dele”. É claro, as ciências naturais, em virtude de sua metodologia, não podem ultrapassar o empírico, o mensuravél. Nesse sentido, são essencialmente redutoras. Se quisermos saber se há um elemento espiritual no homem irredutível à pura matéria, não devemos perguntar às ciências.
Em virtude de sua metodologia, estão proibidas de falar do metafísico. De fato, a renúncia à imortalidade da alma parece suprimir o conflito entre fé e pensamento moderno. Ledo engano, pois as ciências não estão dispostas a falar de ressurreição, e nunca deverão estar se quiserem se manter como ciências naturais.
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